Friday 23 October 2009

Seguir em frente.

Durante anos tive uma cama quente. Todos os dias começavam com um beijo doce, e todas as noites se trocavam palavras. O silêncio não morava comigo – sabia que, quanto mais não fosse, às discussões se seguiam ternas pazes. Fossem elas eternas, também. Durante anos tive um tecto seguro. Sei que muitas vezes vivíamos em realidades diferentes. Eu era capaz de ficar perto da lareira a ler-te em voz alta e tu, por cima dos meus romances sussurrados, debatias dilemas de comprar calças brancas ou pedir emprestado a um colega de trabalho. Sugeria que, de tempos a tempos, fizéssemos um picnic e insistias sempre em encomendar extravagâncias picantes e quase sempre intragáveis. Fazias pouco das minhas fantasias e nunca prestaste grande atenção aos meus sonhos. Eu gostava especialmente de cavalos, tu de peixes. Pelo Natal fazíamos amor perto da árvore enfeitada só porque eu gostava de ver as luzes como pirilampos nas tuas costas nuas e tu... tu achavas só estúpido e infantil da minha parte. Mas, fosse como fosse, durante esses anos eu tive uma realidade.

Já não tenho mais. No Inverno os meus pés estão sempre frios e não há palavras quentes pelo cair da tarde. Anoitece sem desassossegos grandes e leio para mim mesma. Não há paz porque não existem discussões que a antecedam. Mas não há paz porque a solidão, gula, ocupa o espaço todo. Dizem-me que dê tempo ao tempo, que o tempo tudo cura. Mas o tempo só me deixa tempo para pensar no tempo que partilhei contigo. Como eu me sentia viva! Tinha uma cama quente, beijos doces, palavras acesas e um tecto seguro.
Pensei que ia conseguir esquecer-te com algum chocolate e muito sexo. Ou o contrário, tanto dava. Estava redondamente enganada. Não, eu não te amo. Tenho de o dizer alto porque a solidão é demasiado arrebatadora para uma rapariga só e actua pela calada. Não, eu não te amo; digo-o. Mas agora estou num lugar pouco bonito e tem dias, arrebatadores, em que o silêncio mora em mim. E a realidade, nesses dias, abate-se no escuro. É então que penso que fui ambiciosa demais quando disse que tu, a tua vida e o teu amor não me bastavam.

3 comments:

B. said...

vais encontrar outra cama quente, outro tectp seguro e outro coração para o teu morar, disso eu tenho a certeza *
força Pe.

B.

Poppins said...

Fiquei completamente presa ao teu texto.
Maravilhoso, simplesmente!

David Pimenta said...

Tu e qualquer uma das tuas companheiras deste canto encantam, fazem sonhar e deliciam qualquer um.

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